Michelle Jacob Ph.D., é professora do Departamento de Nutrição da UFRN.
Texto publicado pela Agência Bori em 06 de outubro de 2021.
“Não, porque as pessoas não podem pagar por alimentos orgânicos”. E foi assim que há alguns anos uma colega de trabalho tentou me convencer de que o debate da comida sustentável não era para nós, brasileiros e brasileiras.
O ano era 2017. Naquela época a cesta básica custava R$ 431,66 contra os R$ 650,50 de 2021. A trágica combinação de elevação nos preços de alimentos, somada à inflação, ao desemprego de longa duração e aos cortes em políticas públicas de segurança alimentar aumentaram a pobreza no Brasil, colocando o país novamente no mapa da fome. A atual pandemia de Covid-19 e a consequente crise econômica global agravam o cenário. O resultado é que hoje uma em cada duas pessoas no país encontra dificuldades de colocar comida na mesa. Muitas dessas pessoas vivem em situação de fome. E agora? Já é hora de falar sobre comida sustentável no Brasil?
A mentira
Talvez você pense como minha colega, que não. Não é hora. Apesar de não concordar, entendo o porquê de algumas pessoas pensarem desta forma. O mercado transmite a mensagem de que a sustentabilidade é um produto reservado às pessoas e nações que podem pagar por ele.
Ainda na década de 80, o relatório “Nosso Futuro Comum” apresentou para o mundo o conceito moderno de sustentabilidade. Volte e leia novamente o título do relatório. Mais recentemente, com o lançamento da Agenda 2030 das Nações Unidas, a mensagem central continua sendo clara: “não deixar ninguém para trás”. Para que isso seja possível, as soluções para o futuro sustentável não podem ser tratadas como produto.
O conceito de sustentabilidade apresentado em “Nosso Futuro Comum” é fundamentado em duas premissas básicas: (i) a satisfação das necessidades do hoje e (ii) o nosso compromisso coletivo com as gerações futuras. Como nação, somos vítimas de uma mentira fundamental: a de que não temos o bastante para todos. Por isso, precisamos produzir mais, a todo custo social e ecológico, para garantir a comida na mesa hoje. Pensar no amanhã é privilégio dos que podem. Os privilegiados que podem pagar por orgânicos. Mesmo sendo filhos e filhas dessa rica nação, assistimos nosso futuro ser roubado enquanto escutamos a mentira de que não temos o bastante para o hoje.
E então, já é hora de falar sobre comida sustentável no Brasil? Sim. Sobretudo se o objetivo for chegar ao âmago do problema, que é: como garantir o acesso de todos, no presente e no futuro, à comida que seja saudável para as pessoas e para o planeta? Apesar de sutil, esse enquadramento do debate amplia em grande medida a nossa capacidade de refletir sobre as mudanças que nos colocarão no caminho do futuro que queremos.
O enquadramento
Atualmente vem se consolidando a ideia de que precisamos tomar uma atitude sobre o problema da produção e consumo de carne. Para produzir carne em larga escala, somos capazes de cometer atrocidades: desmatamos, expulsamos pessoas e outros seres de suas moradas, matamos, poluímos, entramos de cabeça no cheque especial ecossistêmico, conforme expressão de Reinaldo José Lopes.
As soluções começam a aparecer na forma de produtos: hambúrgueres e almôndegas vegetais, além de carnes cultivadas em laboratório. Particularmente sou entusiasta de muitos deles. Como não acredito na epifania vegetariana em nível global, vejo nestes produtos um potencial de reduzir em grande medida o problema do sofrimento animal. Nos tornamos especialistas em como torturar milhares de animais todos os dias nos sistemas de confinamento industrial. Acredito que o desenvolvimento tecnológico no terreno da alimentação já pode nos ajudar a abordar desafios éticos dessa natureza. Como Nikola Tesla disse ainda em 1900 no livro The Problem of Increasing Human Energy acredito que “todo esforço deve ser feito para impedir a matança arbitrária e cruel de animais, que deve ser destrutiva para nossa moral.”
O debate sobre substitutos da carne, sobretudo o da carne cultivada, quase sempre é muito inflamado. As pessoas acabam se posicionando em pólos extremos contrário e à favor dos produtos e acabam esquecendo de falar sobre ele, o acesso.
É importante falar sobre acesso mesmo que esses produtos mal tenham chegado nas prateleiras dos supermercados. Atualmente, meia dúzia de startups do Vale do Silício dominam a tecnologia de produção de carne cultivada. Essas empresas contam com investimentos dos maiores produtores de carne do mundo, dentre elas Cargill, Tyson etc. Até a nossa velha conhecida JBS já enveredou no mercado dos produtos análogos à carne. Os investimentos feitos por essas corporações acontecem sob a condição de que a propriedade intelectual sob as patentes seja privada. Isso significa que todas as decisões fundamentais sobre a nossa comida serão tomadas por um punhado de pessoas com o objetivo principal de expandir o lucro de seus investidores. Não preciso contar o que acontece no final dessa história.
Mesmo assim, vou dar um exemplo que é um aperitivo dos desafios à frente. Como mencionei, sou entusiasta das opções substitutas da carne. Por um motivo simples: adoro carne. Apesar disso, tenho a resolução pessoal de reduzir o consumo. Tenho feito isso ao longo dos anos. Mas não posso deixar de admitir que é um claro conflito entre razão e paixão, que tenho certeza que compartilho com muitos. Por isso, gosto de pensar que terei análogos à disposição. Segue a história: há menos de um mês comprei uma das opções de frango vegetal de uma das líderes do mercado no país. Na lista de ingredientes um me chamou atenção especial: “condimento sabor frango”. Pelo Instagram, abri a caixa de mensagem e pedi mais informações para a empresa. Segue o diálogo em sua forma integral.
👩🏻 Gostaria de saber o que contém no condimento sabor frango. Poderiam esclarecer?
👨🏻 A gente segue a regulamentação de rotulagem que obriga a combinação de aromas ser chamada de “condimento preparado sabor xx”. Mas fica tranquilx, eu não uso nenhum ingrediente artificial e nem realçadores de sabor. Todos os aromas que compõem o condimento são de origem natural.
👩🏻 E eu não posso saber quais são? Essas informações são importantes pra mim.
👨🏻 Então, os ingredientes do condimento sabor frango não podemos divulgar, se compartilharmos iriamos (sic) compartilhar a “formula (sic) da perfeição” 🤣, mas fica tranquilo, que não tem nada artificial, nem de origem animal!
Não sei você, mas o segredo é uma coisa que me incomoda quando o tema é comida. Quero saber o que estou comendo. E parece que o segredo é a chave no tema dos substitutos da carne. Aqui vai a equação: some concentração de poder com falta de transparência e agregue ainda o objetivo central desses investidores da carne, que é o lucro. Faça essas contas para inferir o potencial do mercado em resolver o problema da carne.
Isso não significa que esse debate não valha a pena. Ele vale e é necessário. Gostemos ou não em um futuro muito próximo esses produtos estarão nas gôndolas do supermercado mais próximo de sua casa. Não debater é entregar nosso futuro de bandeja.
A questão do enquadramento aqui é a seguinte: a “fórmula da perfeição” para garantir nosso futuro comum não deve ser de propriedade privada. A carne cultivada será parte do futuro que queremos se o setor público puder investir e regular o uso dessa tecnologia. E o papel do setor privado, qual seria? Parafraseando o incisivo discurso do economista liberal Jeffrey Sachs na polêmica pré-cúpula sobre sistemas alimentares das Nações Unidas, o papel do setor privado é o seguinte: comporte-se, pague seus impostos e siga as regras.
As soluções
O caso dos substitutos da carne é ilustrativo de que o debate sobre comida sustentável é infrutífero se não considerar, além dos produtos, o acesso. É aqui que as soluções para os problemas da comida se complexificam. Discutir acesso é falar sobre igualdade de oportunidades. Sem rodeios, no terreno da comida, o acesso pode ser traduzido por duas ideias básicas: (i) reforma agrária e demarcação de terras e (ii) renda. Essa é a verdadeira “fórmula da perfeição”.
Sou professora. E é impossível não reconhecer um semblante de desesperança nos estudantes quando chegamos à conclusão de que o futuro que queremos depende de reformas estruturantes na política. Nessas horas é importante lembrar que mudanças estruturantes não acontecem em um estalar de dedos. A panaceia não existe. Tampouco o Messias. Mesmo assim, temos que começar de algum lugar. O Programa Bolsa Família, o Programa Nacional de Alimentação Escolar, o Guia Alimentar para a População Brasileira são provas vivas de que somos capazes de produzir soluções públicas que nos recoloquem na rota da comida sustentável de forma gradual.
Além disso, se você está lendo essa matéria provavelmente é uma das pessoas que têm a sua próxima refeição garantida. Por isso, sua capacidade de participar da construção do futuro que queremos também começa aí, na próxima refeição. Se puder: reduza o consumo de alimentos de origem animal; diversifique sua dieta com mais alimentos locais, sejam eles plantas, cogumelos, ou algas; valorize o trabalho de agricultores e agricultoras familiares. E, para aqueles que menosprezam o potencial de pequenas mudanças, lembro da frase do filósofo irlandês Edmund Burke: “Ninguém cometeu maior erro do que aquele que não fez nada porque só podia fazer pouco”.
Por fim, sua capacidade de participar de forma mais ativa da construção do futuro que queremos também mora no voto. Apoie representantes que defendam expressamente que a forma como produzimos e consumimos comida no nosso país precisa mudar; que não nos transformem em vítimas do engodo produtivista enquanto negociam nossas florestas e nossas vidas; que compreendam que um país rico é um país livre da fome. Essas pessoas existem e merecem nosso voto.
É hora de falar sobre comida sustentável no Brasil? Sim, já passou da hora de podermos voltar a ter esperança no futuro. A esperança anda de mãos dadas com a indignação e com a coragem, como ensina Santo Agostinho. “A indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las”. É hora de retomar nosso caminho na direção do futuro que queremos, pois como nos lembra Ailton Krenak, “o [nosso] amanhã não está à venda”.